Berlin de bicicleta
"Pois o belo significa o possível fim dos horrores" (Heiner Müller - trecho de Müllermaterial dirigido por Stephan Baumgartel)
Berlin, uma cidade única que se alimenta de seus punks e sua arte transgressora.
Depois de 3 meses vivendo em Friedelstrasse no período da primavera e verão (o que é uma experiência completamente diferente do outono e inverno), posso dizer que Berlin é 'auto-explicatória', pelo menos neste período. Existem milhares de coisas para se fazer em cada esquina e o povo literalmente se muda para fora de casa. Já que uma amiga emprestou-me uma bicileta, o que virou meu principal meio de locomoção, achei que esta era, talvez, uma forma no mínimo saudável de descobrir a cidade, e explorar suas nuances com o olhar posto sobre duas rodas.
Foi quando um amigo, Calum, me mandou um link sobre o lançamento do último livro do David Byrne onde ele conta de forma bem pessoal seu engajamento como 'ativista ciclista' nas cidades em que se apresenta, e toda a dificuldade de se locomover pelo mundo carregando sua bicicleta, bem como suas boaventuranças 'pedalísticas'. Minha idéia ganhou força e aqui estou eu, escrevendo este post na minha própria ação de reclamar por cidades multimodais.
Foi andando de bicicleta que descobri os lugares e programas mais interessantes, já que de metrô se vê a cidade de maneira fragmentada sem entender como os bairros se interconectam e como sua história foi permeada por disputas de espaços, públicos e privados.
O transporte (metrô e ônibus) é bom mas caro se comparado à outras capitais europeias, e com ele se perde esta possibilidade de ver a diversidade cultural e social que existe na cidade. Ainda, para incursões mais longes há a possibilidade de viajar nos trens com a 'bici' (tem que comprar bilhetes a parte), por exemplo, na região oeste de Berlin tem uma região de lagos que ficam lotados com banhistas e ciclistas nos fins de semana.
Para os visitantes que por ventura lerem este texto e não tiverem a mesma sorte que eu de arrumar uma bicicleta emprestada com facilidade, existe a possibilidade de comprar uma bici antiga (ou bem usada) por a partir de 40€ num dos diversos mercados de pulgas semanais, e depois vendê-la antes de partir (só cuidado para não comprar bicicletas roubadas incentivando tal crime). Berlin é plana na maioria dos bairros e os poucos aclives que existem são curtos e baixos, o que favorece incrivelmente a locomoção de bicicleta. Outra questão favorável é a segurança, em qualquer hora do dia, noite ou madrugada o perigo nas ruas é mínimo. Apesar dos rumores precavidos sobre os parques à noite, eu me senti a vontade pedalando em qualquer hora e lugar.
Durante alguns dias de sol, com o aquecimento global, a temperatura chega a quase 40 graus. Nestes dias, mais que uma oportunidade, procurar uma sombra e água fresca se torna uma necessidade. Há muitos parques espalhados pela cidade e a arquitetura urbanística é realmente muito linda, e eles são um dos melhores programas na estação, além claro, de passar num spitzel para comprar uma cerveja, sentar na beira de um dos canais e apreciar a passagem das chalanas 'lyncheneanas' levando turistas profissionais.
O Spree Park, Plänterwald e Treptower Park são colados um no outro e vale demais a pena de ir ate lá. O espaço foi reflorestado com árvores nativas e caminhar nas suas trilhas dá a sensação de que se está a quilômetros de distância de um centro urbano, o que é um engano já que o parque fica logo ao lado de uma grande área industrial. O melhor é fazer um piquenique COM VINHO, levar um livro e passar o dia na beira do Spree (canal principal). Nas segundas-feiras têm cinema ao ar livre, as 21h no Insel der Jugend, uma pequena ilha localizada em frente ao parque que se tem acesso a pé pela ponte.
Sábado a tarde no Görlitzer Park, têm um mundo de gente tocando música, tomando sol e fazendo piquenique. Também têm outro mundo de gente vendendo drogas, bebendo e fazendo coisas lícitas e ilícitas. Este parque tem uma história interessante já que na época do muro localizava-se numa área entre Berlin Oriental e Ocidental. Na época não havia muita vigilância e as administrações locais eram ambíguas em relação ao policiamento fazendo vistas grossas para o parque, que então sempre foi um local de liberdade. Este fato colabora para que hoje hajam famílias turcas muçulmanas, músicos de outras nacionalidades tocando suas canções de origem, e africanos vendendo maconha, todos convivendo numa boa. Aliás, este é um dos aspectos peculiares do parque, fazendo dele um local polêmico: as elites acham que o parque deveria ser fechado pois justamente é um local de segurança precária e informal. Para mim, o Görlitzer é um lugar pulsante e vital para contrapôr as dinâmicas separatistas de Berlin, dos conservadores ou 'neo-nazzis' que acreditam nas distinções e privilégios raciais.
Domingo no Mauer Park tem um mercado de pulgas enorme, muita comida de feira e um mundo de gente de todas as tribos. Também tem o famoso karaokê que rola no início da tarde, engraçadíssimo, e uma galera fazendo teatro e apresentações artísticas na grama. Tem atrações suficientes para passar o dia inteiro ali, apreciando o movimento e conhecendo pessoas. Apesar do belo, tem elementos marcantes de comodificação hipster e gentrificação, e tem aquele modo nostálgico de criar espaços de arte que evocam sensações que nos fazem pensar que Berlin é super cosmopolita e aberta, quase multicultural, o que não é bem o caso. Em Berlin, assim como no resto da Alemanha, ainda há muita discriminação com os imigrantes e pessoas de cor, e as políticas integrativas são limitadas.
O Tempelhofer Park é uma área onde ficava um antigo aeroporto, que é razão de uma briga enorme entre o governo, os empreendedores imobiliários e a população. Através de muitos protestos, o local tornou-se público e hoje, o Tempelhofer tem vários jardins urbanos interessantes que inspiram qualquer um a criar seu próprio recanto, nem que seja num meio-metro quadrado na janela do prédio. A galera vai lá pra relaxar, pedalar, andar de patins e fazer exercício, pois é um lugar super aberto que dá uma sensação de campo. Ao redor do parque existem áreas que são de propriedade do governo, mas que são arrendados através de processos bienais de licitação para a população por preços acessíveis. As cotas são anuais, como um imposto, e a única obrigação além desta é a de manter a terra produtiva, com hortas e árvores frutíferas. Uma solução justa, ecológica e que faz uma aproximação viável da distribuição de terra nos centros urbanos. O belo desta história, é que houve uma forte mobilização da população para reclamar este pedaço, que foi ouvida pelos governantes.
A história da fundação da cidade apresenta um panorama fraturado de pequenas vilas que cresceram em demasiado ao ponto de fundirem-se em um só tecido urbano. Neste tempo, a cidade já se dividia em inúmeros setores administrativos que tentavam coordenar os usos de espaços e serviços em comum. Com o advento da segunda guerra mundial, tal dinâmica se intensificou ainda mais com a divisão de territórios entre os aliados e inimigos. Há diversos monumentos marcando espaços onde aconteceram eventos importantes, mas também explorando a arquitetura da destruição, separando-a em quatro domínios: russo da Berlin Oriental; e francês, estadunidense e inglês da Berlin Ocidental. Ao caminhar por Berlin, é impossível ignorar a história ligada ao holocausto. Ao contrário, o holocausto funda uma grande rede de turismo para ver o horror histórico.
Tais monumentos acabam por resgatar a memória dos que perderam suas vidas ali, mas também geram todo um movimento de desenvolvimento econômico através da exploração turística de determinados pontos. Há milhares de pessoas visitando a cidade para apreciar e vivenciar o turismo do horror, muitas vezes de forma esvaziada e blasé, tipo a burguesia tirando selfies dos pontos estratégicos da ação nazista, com pouco interesse crítico e reflexivo sobre o que aconteceu ali. O muro é parte cotidiana da vida dos moradores da cidade, sendo pelo turismo que transforma os espaços, ou pelos pedaços de muro espalhados pela cidade, como algo belo, ou pelas centenas de obras que relembram sua presença, ou ainda pela linha metafórica construída de paralelepípedos que traça a linha por onde o muro passava, e que muitas vezes os visitantes nem a percebem. Dizem que para dar a volta ao muro de bicicleta levaria 7 dias seguidos, parando apenas para dormir. Um projeto para o futuro.
Dicas:
- Oraniestrasse fica no coração do bairro turco Kreuzberg e têm um monte de opções. Meu bar preferido é o Luzia. Os melhores lugares de falafel estão por esta região.
- Hipsters: se vc quer ver zonas industriais gentrificadas vá para a estação Warschauer Strasse, e siga a muvuca para cruzar a ponte sobre os trilhos de trem. A vista ali é linda, perfeito 'urban landscape'. Ali tem uma infinidade de ateliês e coletivos de arte urbana, bares de craft beer. Tem um, em especial, chamado Neue Heimat que é um galpão gigante com música eletrônica, comidinhas e uma galera para o final de tarde.
- Museus e exibições acho que o melhor é fazer uma pesquisa dentro do que lhe interessa, mas tem o Contemporary Art Museum onde um dos meus artistas favoritos, Anselm Kiefer, é um dos artistas residentes. https://vimeo.com/112053965
- Cinema: Arsenale, Internacionale ou Babilon sempre programação boa.
- Estadia: tem um site que aluga quartos em aps compartilhados WG-Gesucht.dee