Sagrado Feminino e o Feminismo: distinções e conexões
Manifesto para o fim da misoginia e formas enquadradas, marginalizadas ou redutoras de (pré)conceito entre mulheres
* Este texto pode ter um tom didático em relação às formas mais atuais e elaboradas das discussões de gênero, mas foi escrito numa reação às resistências por mim vivenciadas em algumas abordagens de trabalhos com grupos de mulheres com o sagrado feminino que 'ainda' ignoram as políticas da corpa, dos direitos humanos e das dinâmicas de coletividade que desafiam injustiças e desigualdades estruturais. Aqui, pretendo fortalecer o trabalho de ativistas comprometidas atuando no campo da individuação da psique feminina, e que apoiam muitas mulheres que sofrem abuso ou são oprimidas em alguma área de suas vidas, e que se preocupam com as questões sociais de mulheres brasileiras.
O FEMINISMO
A primeira onda feminista, ainda no século XIX, bravas mulheres desafiaram o status quo do patriarcalismo, a impossibilidade de participação da mulher na vida pública, e lançaram verdadeiros manifestos escritos sobre a condição de opressão histórica da mulher, como Simone De Beauvoir e Clara Zetkin. A segunda onda do movimento feminista, entre as décadas de 1960 e 1980, veio como uma força radical de repúdio às formas opressoras do machismo de raízes profundamente patriarcais. De certa maneira, a psicanálise de Freud, assim como provocou enormes transformações no campo dos estudos da mente, acabou solidificando e justificando no senso comum todo uma estereotipia ligando o universo feminino à histeria, perpetuado até os dias de hoje em sociedades adoecidas pelo quaternário colonialismo-racismo-sexismo-etarismo.
O patriarcado é uma categoria histórica que se sustenta na forma de distribuição desigual e exploratória de privilégios no que diz respeito às mulheres e as minorias, dividindo a existência humana em dois universos: o público e o privado. O universo público, ou da macropolítica, é determinado pelas grandes estruturas institucionais de poder da sociedade, e foi associado ao universo masculino, das guerras e do controle do estado regendo a organização da própria sociedade, a nossa “grande casa”. Já o universo privado, ou das micropolíticas, foi largamente associado às situações domésticas, do cuidado da vida, da educação, da igreja e das pequenezas do cotidiano, e da comunidade, que hoje, depois do feminismo são “mais” entendidas como organizações que forjam e definem o que é formal ou informal, legal ou ilegal. Porém, antes do movimento feminista, o universo privado, quando muito, era relegado ao universo feminino, às questões da sexualidade e das relações maritais delegando uma falsa soberania da mulher dentro de casa.
Gênero é um instrumental de análise histórica, uma lente de interpretação da vida, não é uma ideologia. O movimento feminista atualmente possui inúmeras vertentes e ainda sofre uma repressão muito grande justificada por ideias sobre o histerismo e a desobediência, em que a mulher, ao solicitar seus direitos à esfera pública, ou seja, ao exigir fazer parte das decisões sobre a “grande casa” onde moramos - nossa sociedade e nosso planeta - foi e é considerada indevida, fora de lugar, histérica seguindo uma lógica falocêntrica e machista. O feminismo que erroneamente é considerado um movimento de "guerra contra os homens”, foi mal interpretado e iconizado por (pré)conceitos que dizem que é um movimento “machista ao contrário”. Equivocadamente foi estabelecido no senso comum alienado que o feminismo significa as mulheres contra os homens. As mulheres que se alinham com o conservadorismo, sobretudo aquelas que desejam constituir suas vidas dentro da "ordem familiar heteronormativa papai-mamãe-filhinho", e que realmente não possuem desejo de protagonismo social (por mim, tudo certo com esta escolha!), acabam encorpando a luta contra a liberação feminina da tirania biológica de uma maternidade compulsiva e uma justificativa existencial da mulher exclusiva à reprodução humana.
Mas, se num primeiro momento, o feminismo surge como força radical foi porque necessitava estabelecer um território de fala e negociações que fora milenarmente suprimido pelo regime e cultura patriarcais, e não seria pedindo “com licença, posso falar” que mulheres ganhariam espaço. A mídia hegemônica e os intelectuais (mesmo os esquerdo-machos) trataram de crucificar as feministas como mulheres indevidas e sem espaço na sociedade, excluídas por seu comportamento, digamos, mal educado, indevido e exagerado. Ainda escutamos que as questões das mulheres são MI-MI-MI, mesmo o Brasil sendo atualmente um dos países com maior índice de violência contra a mulher e feminicídios. Mas a voz feminista esculpe justamente espaços na sociedade que hoje foram conquistados com muita luta, enfrentamento, inteligência astuta e protesto. Então, o patriarcado, a cultura machista e todas as pessoas que não entendem como eles operam por meio da MISOGINIA, deslegitimam a própria luta das mulheres e de outras categorias marginalizadas quando desarticulam suas vozes ainda afirmando que feministas possuem comportamentos inaceitáveis.
MISOGINIA
Façamos uma pequena pausa para entender o que é misoginia. Do grego miso (ódio) e gyne (mulher), define um distúrbio individual ou coletivo em que as mulheres são vistas como seres inferiores, diminuídos, destruidores, odiosos e/ou desmerecedores. Em 1989, Susan Forward escreveu seu livro “Homens que odeiam suas mulheres, e mulheres que os amam”, onde primeiramente fala sobre o amor romântico, aquele vertiginoso e cheio de projeções (que mais tende a ser uma queda no abismo, emocionante porém fatal). Por trás das análises que a autora faz em diversos depoimentos de mulheres que viveram uma relação de abuso com seus parceiros, o conceito mais relevante explorado por ela é o da misoginia, que nada mais é do que a tendência comportamental, individual ou coletiva, de julgar mulheres apenas por serem mulheres.
A misoginia também é coletiva, portanto, é um erro acreditar que apenas homens podem ser misóginos, e este é justamente o maior perigo desta patologia cultural. Há muitas mulheres misóginas que julgam outras mulheres, sem o saber crítico de que estão reforçando e operando um padrão de comportamento misógino e exclusivista.
Quando, por exemplo, uma mulher que acredita que feministas são indevidas porque elas lutam contra os homens (que elas são "machorras") e ela acredita mais no alinhamento dos "papéis" homem-mulher pregado, inclusive, pelo sagrado feminino, ela demonstra que não apenas não sabe o que é feminismo, mas também não sabe o que é sagrado feminino.
O SAGRADO FEMININO
Um primeiro estranhamento crítico sobre o termo sagrado feminino seria o de pensar sobre a palavra "sagrado", termo que deveria estar mais relacionado às práticas de inteireza, de espiritualidade ou religiosidade. O sagrado é aquilo que conecta o ser à uma dimensão mais elevada, integrando as parte fragmentadas pelas experiências e traumas. Num tempo de luta e injustiças como o agora, a dinâmica de afirmar que o sagrado feminino equivalia somente à "mulher sagrada" aconteça, talvez, porque exista uma necessidade reparativa e afirmativa de elevar a mulher a um patamar de divinização como forma de conquista de espaço, ou de cuidado de sua psique e autoestima, ou de ativismo de gênero. Em qualquer destes casos, pergunto, haveriam diferenças entre os benefícios públicos e privados desta dinâmica de transformar a própria espiritualidade ou religiosidade num ato esvaziado de seu significado? Divinizar a mulher como sagrada é necessário para a sua retomada de poder, porém, pode criar uma forma de ilusão que a aliena da vida pública. A ideia de que o divino tem mais força que o humano, deixa à deriva o próprio poder autônomo de ação imediata, ordinária e mundana, podendo isolar aquele “ser divino” da esfera humana, e ainda cria noções de privilégio e proteção irreais e alienadas, sem perceber que ainda há muito trabalho a ser feito para conquistarmos um mundo melhor, para todes es seres humanes. Há uma necessidade de reparação dos anos de práticas misóginas, e façamos isso no plano simbólico, abstrato, mas também de forma concreta, com ações coletivas e transformativas.
Então, há que se entender que o sagrado feminino que nos relacionamos aqui não se refere a “reduções” ou “essencialismos” que determinam os "papéis" do homem e da mulher, que devem fazer tais-e-tais tarefas na casa e na sociedade. O sagrado feminino, aquele que se refere ao intuitivo selvagem - de autoras como Clarissa Pinkola Estés, Marija Gimbutas, Jean Shinoda Bolen, Starhawk e tantas outras - refere-se às energias sutis e aos arquétipos que relacionam o comportamento de ser humane aos movimentos da natureza, às tradições matrifocais e às estruturas míticas. O sagrado feminino aqui entendido é uma forma de orientação da sujeita aos processos mais elevados para exercitar a hermenêutica da vida em relação aos seus ciclos, e ao combate aos movimentos auto-predatórios da psique. Já o feminismo é uma forma de organização social que re-clama o espaço das mulheres na vida política, pública, delineando privilégios de forma igualitária, e desarticulando a ideia de que a corpa da mulher é território de dominação e controle.
Eles diferem-se entre si em diversas instâncias, mas para colocar de uma forma simples, pode-se afirmar que ambos são formas de orientação: o feminino sagrado orienta a sujeita (vivendo em sociedade) para transformar a vida como um ato ético pela grandeza da próprio sujeita ao autodesenvolvimento em harmonia com os seus ciclos naturais e os ciclos da natureza, e o potencializa por meio de ritualizações. Já o feminismo faz um movimento quase inverso, pensando através das (infra)estruturas sociais, em como se chegar ao bem-estar de seus indivídues vivendo em sociedade e apontando desigualdades normalizadas ou institucionalizadas pelas mesmas. Ambos são necessários para a cura completa do planeta.
Todos os discursos redutores que falam sobre o feminino como se fosse algo das mulheres, já partem de um pressuposto equivocado afirmando que a mulher “é” o feminino. O feminino seria uma FORÇA ARQUETÍPICA associada aos fenômenos da natureza, tais como os ciclos; as marés; as mudanças – que são diretamente associadas as mulheres por conta de sua própria natureza cíclica e mutante. Mas muitos homens também são femininos e feministas, demonstrando que é uma confusão generalizada achar que o sagrado feminino e o movimento feminista são opostamente dissociados, e que ambos são de "propriedade" das mulheres.
Ora, se “propriedade” é justamente o que o patriarcado e ao capitalismo evoca, em contra-posição ao coletivismo (re)clamado pelo feminismo, então discursos intolerantes apropriando o feminino exclusivamente às mulheres e que se colocam contra o feminismo sem realmente entendê-lo, apenas fazem reforçar as lógicas patriarcais. Portanto, em nosso momento "herstórico" (da história contada por vozes de mulheres), ao contrário dos pensamentos pejorativos e separatistas, o sagrado feminino e o feminismo andam juntos, e são absolutamente complementares. Tal é que o maior símbolo do feminismo contemporâneo é o batom vermelho e a mini-saia (símbolos que representam mulheres "femininas"), e do feminino é a pureza dos "seios de fora" amamentando (mesmo símbolo das feministas queimadoras de sutiã dos anos 1960); movimentos que se apropriam em suas imagens iconográficas demonstrando formas de conexão, demonstrando os espaços intersticiais e fronteiriços entre eles.
Hoje em dia ainda se escuta muitos comentários desinformados sobre o que é o feminismo, determinando-o a aquele espaço de loucura, ou inadequação, ou “mal-amação” para as feministas, tipo “aceito-as mas não perto de mim, por favor” ou “tadinha, virou feminista, deve ter sofrido uma perda horrível ou estar precisando de consolo” subentendendo-se “um falo”.
Em se refletindo sobre se são as mulheres ou os homens que estão no poder, há que se refletir também sobre o PODER, sua sombra e sua luz - na sombra, aquele que é orientado pela dominação que incita disputa entre mulheres, o que se difere em lógica quando na luz que em-poder-a mulheres que trabalham em sororidade, em rede, aquele que o sagrado feminino promove. Para mudar a lógica de poder patriarcal, não adianta mudar o “sexo” dos governantes, há que se mudar a lógica de se entender a organização social, o sistema (atualmente capitalista) globalizado que nos rege, os usos dos recursos naturais, ou seja, há que se entender da esfera pública (a nossa “grande casa”, TERRA organizada em sociedades), buscando dinâmicas de solidariedade, amorosidade, comunidade, assitencialismo, educação e bem-estar para todes es seres. Há que se estudar as políticas e trabalhar coletiva e colaborativamente. Há que se entender que o que acontece com os mais pobres e marginalizados nos diz respeito, que o que estão fazendo com o planeta nos diz respeito, e que as pequenas corrupções e cegueiras cotidianas são parte de um todo. Que nossas atitudes e posicionamentos são atos políticos e causam impacto. Há que se entender o que significa "público", ou seja, se uma mulher usa sua corpa num movimento de conquista de espaço, deve usar de forma inteligente e perspicaz articulando transformações sociais e discursos, senão, pode acabar reforçando a lógica da mulher-objeto, aquela mesma "desejada, e esvaziada" que vende cerveja no outdoor.
Se queremos mesmo lutar por uma transformação real, apoiemos aquelas que vêm pensando em nossos sistemas: as feministas, os povos indígenas, as pessoas "estranhas", es marginalizades, as classes mais desprivilegiadas, ativistas de direitos humanes, pois eles estão a fazer o trabalho de formiguinha capaz, talvez, de mudar algo para melhor em nossas organizações coletivas. O efeito borboleta começa sempre de um ponto, que pode ser cada um de nós.
"O Silêncio das Inocentes" de Ique Gazzola, fala sobre a violência contra a mulher e a luta de Maria da Penha para fazer justiça contra seu agressor. Sua história e caso resultam na Lei nº 11.340/2006 que proteje a mulher.
Adriana Miranda da Cunha é ativista de gênero e direitos humanos, performer e produtora de eventos sobre cinema (www.africandocumentaryfestival.com / www.indigomundo.org / www.dancaorganica.org).