Essaouira - Marrocos
Atraídos pelo Festival Ganoua Musiques du Monde 2015 acabamos conhecendo Essaouira, um pequeno lugarejo com bem mais que 1000 anos de história.
Localizada na costa marroquina a cerca de 300km ao sudoeste de Marraskesh, Essaouira tem como data oficial de sua fundada em 1764, pelo sultāo Sidi Mohamed ben Abdallah, onde ali fomentava um intenso tráfego de escravos, prática estabelecida já desde os tempo do império egípcio. Porém, antes disso, o povo Berbere habitava a costa marroquina. A cidade recebeu a visita do viajante português Duarte Pacheco Pereira já em 1506, e ainda era ponto de parada para os mercadores que vinham do noroeste africano em direção ao Egito desde início da idade média. Cercada por muros centenários que serviam de proteção contra ataques inimigos e piratas, Essaouira, que até poucos anos atrás permanecia com suas fronteiras apenas dentro dos muros, expandiu-se devido as atividades portuária, pesqueira e turística.
Ao descer do ônibus Supratour, avista-se o imponente Bab Sba, um dos portais de entrada à Medina, centro comercial e cultural da cidade. Michelle Boutazar (nossa anfitriã) e sua família, Abderrahim Boutazar (músico Gnaoua) e Nora (a filha de 16 meses de idade) nos aguardavam na estação. Eles possuem a pousada Dar Nora acolhedora e de preço muito acessível (20€ por casal). Uma das primeiras frases que a imigrante norte-americana casad com o músico local falou foi 'que bom que vocês vieram até aqui pois não se pode ter noção do que é o Marrocos apenas indo para Marrakesh, e é uma pena que a maioria das pessoas que visitam o país, limitam-se a ficar por ali'. Michelle optou por viver em Essaouira há 4 anos e não tem planos de mudar-se do vilarejo. Ela conta que foi amor a primeira visita ao lugar 'depois de passar quase um mês aqui, a vida não fazia mais sentido sem ser vivendo aqui'.
O que Michelle sentiu é absolutamente compreensível. O lugarejo carrega sua história na arquitetura, no dia a dia de seus moradores, que carregam o tempo com a maestria de quem sabe apreciar as ondas do mar. Por meio de sua cultura, sabores e aromas, o povo vive ali entre cafés e arguiles. O mar, as montanhas longínquas, as dunas, e o vento forte complementam sua peculiaridade. Michelle compartilha tal opinião com outros ilustres passantes que viram em Essaouira um lugar inusitado. Orson Welles, por exemplo, escolheu suas ruelas místicas para ser cenário do filme 'Otelo', e hoje existe lá um jardim em sua homenagem.
Diz a lenda que Jimi Hendrix escreveu a música 'Castle Made of Sand' em homenagem às ruínas do forte Bordj el Berod (ao lado). Não se sabe ao certo se ele passou uma noite ou uma semana na cidade, mas as línguas falam que ele aproveitou o hashishe e opium local. Localizado nas dunas do bairro de rua única chamado Diabat, onde o café e o hotel recebem o nome do músico, o local inspira rock'n roll e recebe fãs e turistas de todas as partes do mundo. Outros nomes, tais como Cat Stevens, Mick Jager, Keith Richards, Jeferson Airplane and Frank Zappa, visitaram a cidade em busca de inspiração musical (e de outras naturezas) nos anos 1970.
O acesso à ruinas pode ser feito de taxi, bem negociado, por 20 Dirhans; ou se o dia estiver bom, a melhor opção é usar um chapéu, carregar água e caminhar pela praia até as dunas. Lá se pode alugar um camelo ou cavalo, cruzar um rio raso de onde se avista as ruínas, e procurar uma trilha que fica em frente da ilha do forte para chegar até elas.
Marrocos é conhecido por suas cores, e Essaouira por seus tapetes. Os tons que variam de branco, beges, terracota, vermelhos e laranjas em contraste com o azul índigo, são extraídos de minerais e plantas. O tingimento é uma tradição milenar, bem como as técnicas de produção de lã e seda que são passadas de geração em geração e continuam sendo feitos de maneira artesanal. Pode-se apreciar os artesãos manipulando os fios com extrema habilidade nos arredores da Medina. Muitos corantes naturais são encontrados unicamente no Marrocos, como o açafrão, que além de ser uma iguaria da culinária, faz parte da gama de produtos de tingimento. A lã tingida transforma-se em tapeçaria que expressa aspectos da cultura de cada tribo onde é produzido.
Outro artesanato tradicional é a marcheteria, trabalho em madeira onde se usa o caule, a casca e as raízes das árvores locais. Artesāos trabalham com as portas abertas e sāo receptivos a conversar sobre sua arte. O Sr Ahmad nos contou que a arte é um legado da presença judaica na cidade no final da idade média.
O povo berbere é hoje majoritariamente muçulmano e eles são a principal etnia da região. Suas vestimentas, bordados, artes visuais, dança e música representam a natureza. No entanto, há traços de outros povos que habitaram a regiāo, por ser considerado rota migratória dos antigos mercadores que vinham da África Noroeste para o Egito.
A Jewish Quarter (fotos abaixo) é um lugar de intenso contraste. Antiga moradia dos judeus que se estabeleceram mais fortemente no Marrocos após a segunda guerra mundial, foi paulatinamente abandonada por eles quando o estado de Israel foi estabelecido em 1948. Em meados dos anos 1970, o bairro estava completamente vazio. Em 2008, a municipalidade decidiu destruir as moradias que estavam sendo ocupadas e em estado estrutural de periculosidade. Hoje, vendedores de hashishe dividem espaço com moradores que circulam por ali, e crianças que jogam futebol ao entardecer.
Ao lado da Jewish Quarter fica umas das principais ruas que leva o nome de seu fundador, Sidi Mohamed ben Abdallah. Ao final da rua fica a praça Boutouil, um lugar sossegado com cafés e arte. Há também uma fonte de água potável onde a população local vem para buscar água, lavar os pés e o rosto durante o dia. Ali, se encontra 'La Cantina' (foto ao lado) um restaurante precioso para sanduíches vegetarianos e lanches rápidos servidos pela simpaticíssima Yolanda, uma holandesa que mudou-se para Essaouira há um ano. Ali perto, fica o melhor restaurante para tagines e cuscus e pratos típicos, o Myiame Resto, com sabores inesquecíveis.
O legado da escravatura e constante migração entre o oeste Africano e o Egito, deixaram traços visíveis até hoje na cultura e arquitetura. O intenso comércio, a barganha e as longas conversas regadas a chá de menta ou verbena fazem parte do cotidiano. O muro que circunda a Medina se faz presente na paisagem, e é um convite ao ócio meditativo ao entardecer. Os moradores apreciam o bater das ondas nas paredes de pedras ao cair do sol.
A indústria pesqueira é forte, ao lado do turismo e tapeçaria. (foto: porto). Caminhar por entre as redes e as docas é um passeio que não pode deixar de acontecer em Essaouira.
GNAOUA
Acontece em Essaouira um fenômeno interessante onde a música e a dança Gnaoua, fortemente presente como prática espiritual de cura e transcendência, coexistem pacificamente com o islamismo, uma religião restrita no que se refere às expressões do corpo. Os horários de cerimônias de ambos as tradições são estritamente respeitadas para não haver choques. Muçulmanos participam do ritual Gnaoua chamado 'Lila' ou 'Leela', uma cerimônia densa que dura no mínimo 10 horas consecutivas. Sua estrutura é rica em canções de adoração, incensos de mira e benjoin, comidas, chás e danças trânsicas.
(foto: Maalems Allal Soudani e Rachid Bentar)
Tradicionalmente, Ganoua é um estilo de música ligada ao povo berbere e à herança da escravatura. Como forma de superar os traumas e perdas sofridas em capturas e comercialização, os escravos indígenas se organizavam em grupos para cantar e dançar. Ao longo do tempo, Gnaoua tranformou-se em uma cerimônia composta de músicas elaboradas pelos qarqbas (castanhola marroquina com duas conchas acústicas), guembri (instrumento de três cordas feito de madeira e recoberto com couro de camelo que produz um som grave, atingindo tons abaixo das escalas ocidentais), e o tabal (tambor grande com peles nas duas extremidades do corpo tocado por baquetas retorcidas na ponta, parecida com uma bengala)
A cerimônia não é ligada à dogmas religiosos, mas é uma experiência considerada espiritual. Os movimentos do corpo (bater com a mão direita na região torácica, o balançar da cabeça em círculos e em forma de 'oito', e, marcar os acentos da música com batidas de pé e saltos acrobáticos) promovem estados alterados da mente e um profundo transe induzido pelo ritmo cíclico na música. A orquestra é composta por diversos qarqbas, um guembri e três tabals, dois que sustentam o ritmo e um que floreia com o dançarino. Os dançarinos, que geralmente tocam também o qarqba, possuem um chapéu adornado por um penduricalho que eles mantém girando ao ritmo da música enquanto tocam.
A cerimônia possui uma estrutura organizada (fotos a cima):
*Cortejo: músicos e dançarinos caminham pelas ruas para convidar os participantes.
*Entrada: guiados por um Maalem (mestre) que prepara o campo espiritual com incensos de mira e benjoin, músicos e dançarinos ocupam o espaço considerado sagrado.
*Apresentação: posicionados frente a frente, músicos com tabal e dançarinos com qarqbas dançam primeiramente em círculo e depois em linha até formar um semi-círculo, onde então cada dançarino apresenta-se singularmente fazendo suas honras aos músicos.
*Pausas: a cada hora de ritual, a cerimônia é pausada para que músicos e dançarinos descansem, comam e bebam chá de menta, alecrim ou verbena.
*Transe: o músicos e dançarinos se posicionam ao fundo da sala, de frente para a audiência. Este é o momento em que participantes podem se levantar e dançar junto aos músicos. Inicia-se então as canções de adoração à natureza baseada nas sete cores do arco-íris. Cada música tem um ritmo, uma intenção e uma cor. As cores são determinadas por echarpes que cobrem a cabeça dos dançarinos em transe que dançam ao redor do incensário.
O FESTIVAL
Há quase duas décadas acontece em Essaouira um dos maiores festivais de música Gnaoua e do mundo, o Gnaoua Musiques du Monde. Com a participação de grandes nomes Gnaouis, tais como Maalem Mahmoud Guinea, Maalem Abdelkebir Merchane (foto) e Maalem Hamid El Kasri, o festival também contou com a participação de nomes internacionais, como Kenny Garret, Sonny Troupé, a banda de Mikkel Nordø tocando com o afrobeater nigeriano Tony Allen, Salif Keita arrasando no ritmo de Mali, e a cantora pop franco-marroquina Hindi Zahra com sua voz rouca invocando o imagético oriental.
No festival, a música Gnaoua se transforma em uma apresentação performática e adaptada para palco, onde dançarinos jovens se apresentam com inúmeros movimentos acrobáticos que impressionam a platéia.
A cidade prepara-se anualmente para receber os visitantes que vem crescendo em número a cada ano. Apesar do festival ter a presença de milhares de marroquinos vindos de todos os cantos do país, é fácil encontrar pessoas de outros lugares. Com duas pontes aéreas diretas que vem da França e Espanha pela Easyjet, a cidade troca sua moeda de Dirhans para Euros durante o festival. Marroquinos que falam a língua berbere, o espanhol (por ter sido parte da história sul-hispânica) e francês (devido a colonização), aprendem agora o inglês para melhor interagir com turistas. Existem, no entanto, conflitos em relação ao consumo da música Gnaoua, que pouco a pouco perde seu caráter sagrado para ser apresentado em palcos. Puristas preferem o festival de antigamente, que ainda era feito nas salas sagradas em pequena escala.
O jovem comerciante de tapetes M'Hammed Ajagjal (foto), pertence a uma família de tecelões e que tem seu estabelecimento há gerações. Além de recepcionar-nos atenciosamente com explicações detalhadas sobre a feitura de tapetes, ele argumenta 'eu cresci vendo e ouvindo Gnaoua e para mim, o que se apresenta no festival não me interessa muito. Eu prefiro participar das cerimônias que são fora do evento e mais privativas. A música Ganoua agora virou uma espécie de world music, de jazz e outras coisas....Nossas mães não querem ouvir este tipo de música'
As políticas do festival têm sido alvo de reclamações da população local. Mohamed Kabbat, proprietário da 'Le Bibliophile', é uma figura interessantíssima. Ao visitar sua livraria, o ideal é ir com tempo para poder saborear as histórias e livros que Mohamed têm (entrevista). Ele conta que um dos problemas do festival é em relação aos subsídios econômicos que os líderes políticos destinam para o evento, ao invés de investir em moradias para a população pobre que vive fora da Medina em condições de precariedade.
Abderrahim, nosso anfitrião e músico Gnaoua comenta que 'antigamente o evento empregava muito mais músicos locais, e agora privilegia apenas celebridades e artistas internacionais'.
De fato, no palco principal, onde existe uma área reservada para quem compra os passe (600 Dirhans), os artistas se intercalam entre música Gnaoua e outros estilos, o que torna o show variado. Mas a audiência massivamente marroquina ainda prefere sua própria música. (foto: antes do show artistas de rua ocupam a praça)
Já os jovens marroquinos são mais abertos a misturas: punks, metais, piercings e muitos dreadlocks circuclam na praça antes, durante e depois dos shows, que duram toda a noite. Hamity Bahtat (foto abaixo-esquerda), um jovem instrutor de surf veio de Rabat e diz 'Gnaoua é um sentimento, é dançar como louco, eu danço como se estivesse dançando metal ou punk-rock, mas tem que dançar de acordo com a música...Gnaoua para mim é paz'.
GÊNERO
Um dos aspectos das políticas de gênero com relação a estrangeiros chega a ser radical: não pode haver troca de afeto entre casais em público. Os guardiães da moral pública, além da policia, são os grupos de meninos (entre 12 e 15 anos) que circulam intensamente pela multidão procurando casais que trocam afetos. Eles não perdem a oportunidade de demonstrar de maneira bem patriarcal e violenta os limites de pudor que os desavisados devem ter: eles miram e vão de encontro ao casal num ataque grupal para esbarrar na mulher que estiver nos braços de seu amado. Infelizmente isso aconteceu conosco, e aprendemos a lição.
O ataque, que no festival foi direcionado a mim, geralmente acontece direcionado ao casal. Segundo o antropólogo marroquino que pesquisa o fenômeno, Moulay Driss Elmaarouf, os meninos procuram casais muçulmanos namorando para molestá-los com palavras arbitrárias e chacotas. Uma forma de controle da sexualidade que perpassa o social.
As mulheres marroquinas são abertas e comunicativas com as mulheres estrangeiras que respeitem suas crenças. Algumas mulheres mais velhas usam a burka, mas a maioria da mulheres (meia idade e jovens) usam apenas o hijab (lenço que cobre os cabelos) e sempre tem um sorriso para oferecer no caso de troca de olhares.
Estávamos interessados em assistir Dança do Ventre, e todos os lugares que perguntamos recebemos olhares enviesados como se o que estivéssemos procurando fosse algo estivesse bem errado. Com a dificuldade de encontrar um local com apresentações, concluímos que a dança pode ser mal vista no Marrocos. Quando estávamos de partida, encontramos um local que oferece apresentações semanais, o Riad La Madina. Fica a dica!
ONDE IR
*Praça Marche aux Grains que hoje é um pátio cheio de pequenos cafés e restaurantes, foi um dia praça de comércio de escravos.
*Galeria La Kasbah, incrível acervo de arte e antiguidade marroquina.
*Bazar du Monde, loja de música com os melhores cds de músicos africanos, na Sidi Mohammed.
*La cooperative féminine agricole Tawount onde as mulheres preparam o oleo de argan feito na hora.
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