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Bolsonaro e o fantasma da Casa Grande

Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal New Frame, editado por Richard Pithouse, no link:

Em 3 de outubro de 2017, Jair Bolsonaro foi condenado pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro a pagar R$ 50 000,00 em indenizações ao Fundo de Defesa dos Direitos Coletivos.

Bolsonaro, que pode se tornar o próximo presidente do Brasil no segundo turno no domingo, foi multado por essa declaração: “Eu visitei uma comunidade quilombola e o mais leve dos afro-descendente lá pesava 100 kg. Eles não fazem nada. Eles não servem nem para procriar”.

Quilombolas são assentamentos inicialmente estabelecidos por escravos fugitivos de descendência africana. Eles têm lutado pelo reconhecimento do governo, um processo que começou sob o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) de Luiz Inácio Lula da Silva. Bolsonaro, ao tornar-se presidente, poderá bloquear a legalização das reivindicações de terras quilombolas e indígenas.

O desprezo de Bolsonaro pelas comunidades negra e indígena no Brasil revela um paradoxo central no coração do nacionalismo brasileiro: sua identidade. A celebração da diversidade foi construída sobre o silenciamento de uma história de violência extraordinariamente brutal contra africanos escravizados e povos originários. A exploração racializada e a desapropriação que fizeram o Brasil ter sido mascarado por afirmações fáceis, como uma sociedade miscigenada.

Mas o racismo explícito da candidatura de Bolsonaro está destruindo a frágil imagem de unidade da sociedade brasileira e expondo seu violento passado.

Uma história brutal

O trabalho do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre chamado Casa-Grande e Senzala, lançado em 1933, revelou esta brutal contradição. Escrevendo sobre as plantações de cana-de-açúcar antes da abolição da escravatura em 1888, Freyre observou como “meninas de 12 ou 13 anos [...] eram dadas a homens brancos das cidades já apodrecendo com a sífilis”. Ele escreveu sobre o sadismo dos senhores de escravos e documentou meticulosamente a marca e a tortura de escravos.

Mas, como se não pudesse suportar essa visão violenta, Freyre também argumentou que a escravidão brasileira era relativamente benigna. Em um trabalho posterior, no qual expressava nostalgia pelos dias de escravidão no contexto da urbanização generalizada e das crescentes divisões da cidade brasileira, Freyre escreveu sobre “uma quase maravilha de acomodação: do escravo para o senhor, do negro ao branco, do filho ao pai, da mulher ao marido.”

Freyre teve uma influência significativa sobre a identidade brasileira como uma "democracia racial" e sua adoção nacional da síntese de elementos indígenas, europeus e africanos no carnaval, samba, futebol, tradições musicais e literárias e alimentos ricos e variados. O samba, criado entre artistas negros no Rio no início do século 20, foi baseado em formas musicais africanas trazidas para um explosivo encontro com as tradições carnavalescas europeias. A erva mate, bebida originária, é amplamente apreciada em todo o sul do Brasil.

Mas o sentido do Brasil como uma sociedade mista, como uma "democracia racial", nunca abordou a violência racial feita no Brasil, e que continuou no presente. O historiador Thomas Skidmore traça uma linha direta na evolução da tortura durante a escravidão nas experiências do Brasil com a democracia e a ditadura, desde a República Velha (1889 a 1930) até a última ditadura militar do país (1964 a 1985). Durante esse período, os abusos policiais se transformaram nos esquadrões da morte extrajudiciais em São Paulo e no Rio de Janeiro. Legitimados pela retórica anti-crime, esses esquadrões da morte, e a persistente perseguição policial, têm como alvo principal a juventude negra que vive em favelas.

Assassinatos políticos continuam sendo comuns no Brasil, particularmente de líderes indígenas. Neste ano, o assassinato da líder negra carioca Marielle Franco, que era lésbica e estava investigando assassinatos cometidos por policiais, recebeu atenção global significativa. Embora seus assassinos não tenham sido revelados, supõe-se que eles tenham ligações policiais.

Política do ódio

Bolsonaro, ex-capitão militar e atual membro do parlamento, celebra e defende a tortura, juntamente com a homofobia desenfreada, o sexismo e o racismo. Em 2016, dedicou seu voto para destituir a ex-presidente do PT Dilma Rousseff a Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais hediondos torturadores da ditadura militar. A própria Dilma foi torturada como uma guerrilheira anti-ditatorial.

Bolsonaro disse a outra colega parlamentar que ela era uma “prostituta” e “eu nunca iria te estuprar porque você não merece”. Ele acredita que as comunidades gays estão "ativamente estimulando a homossexualidade em crianças", disse que "preferiria que meu filho morresse em um acidente de carro" do que ser gay, e que ele era pai de sua única filha em "um momento de fraqueza". Seus partidários zombaram abertamente da morte de Franco.

Sobre estupro, um pesadelo sul-africano, Pumla Gqola escreve que, sob o capitalismo racial, “toda forma de degradação causa vergonha. Assim, as pessoas pobres são levadas a sentir vergonha de si mesmas e de sua pobreza, alimentadas com uma dieta diária de inferioridade, preguiça e inadequação”.

Gqola argumenta que o estupro e o racismo, como bases do colonialismo, continuam a permear as sociedades colonizadas em todos os níveis. Na África do Sul, o apartheid tentou manter diferentes raças separadas. No Brasil, embora não legislado, o envergonho poder racial perpetua-se através do silêncio sancionado pelo Estado sobre o racismo.

Bolsonaro e seu clã de filhos, que também são políticos, exercem o poder da vergonha. Como os patriarcas da antiguidade, eles se sentem no direito de controlar os corpos e os direitos reprodutivos e sexuais daqueles que não se conformam com seus valores.

Freyre argumentou que, com o declínio da escravidão, a “casa grande” e a “senzala” se transformam em novas formas - as mansões da cidade e as favelas. “O patriarcado tende a prolongar-se no paternalismo, no culto sentimental ou místico do pai ainda identificado para os brasileiros com a imagem do protetor, o homem do destino, o homem indispensável ao bom ordenamento da sociedade.”

Bolsonaro e seus seguidores fanáticos trouxeram esse culto do pai branco para a era das mídias sociais. Bolsonaro se recusou a participar de um debate televisionado com seu adversário, Fernando Haddad do PT. Em vez disso, ele se baseou nas mídias sociais e nas críticas onipresentes online contra a ameaça comunista, comparando a oposição de esquerda aos terroristas de uma maneira que os sul-africanos se lembrarão de P.W. Botha na invocação do "rooi gevaar" (perigo vermelho).

Não há mais vozes dissidentes

Para seus detratores, o PT incorpora a corrupção do Brasil contemporâneo. A vitória de Lula e do PT em 2003 anunciou um triunfo baseado em décadas de mobilização a partir dos anos 1970 pelos sindicatos, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e outros movimentos sociais para conquistar o poder do Estado.

Sob Lula, houve melhorias sem precedentes nas condições de vida dos pobres. Mas o PT nunca conseguiu quebrar o poder da elite no país, incluindo a mídia. O partido nunca deteve a maioria no parlamento do país e, para governar, recorreu à compra de votos.

A corrupção em massa, como o escândalo da Petrobras, continuou sob a presidência do PT, embora muitas vezes envolvesse políticos de todo o espectro político. Dilma, que seguiu Lula da Silva até a presidência, nunca foi implicada. Seu impeachment foi em parte dirigido para proteger os parlamentares contra o escândalo da corrupção. Lula da Silva, ainda imensamente popular, foi condenado e preso por acusações de corrupção por motivos altamente especulativos, e impedido de concorrer nesta eleição.

Mas essa estrutura patrimonial não foi criada pelo PT: é o modo de poder de elite em que a política brasileira sempre operou. Continuou de maneira mais desconcertante, uma vez que Dilma Rousseff foi retirada em um “golpe suave” em 2016 por Michel Temer, seu adjunto do MDB do partido do Movimento Democrático Brasileiro. Com o apoio do parlamento executivo todo composto por homens brancos, ele instalou algumas das políticas mais anti-pobres já vistas em uma sociedade supostamente democrática.

Um dos elementos do PT que a direita mais odiava foi a expansão das políticas de ação afirmativa sob os governos de Lula da Silva e de Dilma Rousseff.

Haddad, opositor de Bolsonaro, foi ministro da Educação de 2005 a 2012 e supervisionou a expansão radical do ensino superior e o acesso de estudantes afro-brasileiros e indígenas contra uma oposição significativa. Como prefeito de São Paulo de 2012 a 2016, Haddad trabalhou de perto com os movimentos sociais e planejou a compra de 41 edifícios em que houvesse ocupações desses movimentos para fornecer moradias de baixo custo para seus moradores. O plano foi destruído pelo prefeito de direita que se seguiu.

Em contraste, no último domingo, Bolsonaro nivelou um ataque extraordinário contra o PT e os movimentos sociais, incluindo o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Ele os acusou de serem "bandidos" e ameaçou baní-los e prendê-los. “Será uma limpeza como nunca vista na história do Brasil”, disse ele. Muitos dos membros e líderes desses movimentos são mulheres negras que superaram dificuldades extraordinárias para encontrar uma voz política no Brasil, como Marielle.

Haddad, e seu vice, Manuela d'Ávila, do Partido Comunista do Brasil, não são os militantes de esquerda que Bolsonaro e grande parte da mídia fizeram deles. Mas sua candidatura ainda oferece uma visão de um Brasil inclusivo, ainda que frágil, e uma política feminista que o Bolsonaro ameaça destruir.

A ascensão de Bolsonaro foi impulsionada por apoio evangélico e corporativo por meio de campanhas enganosas nas mídias sociais. Mas seu modo de tecer o poder não é novo. Sua ascensão é uma expressão do ressurgimento de uma história amarga e não resolvida em um desejo desastroso de pureza e purificação.

A casa grande está sendo reconstruída nas fundações dos piores e mais profundamente enterrados aspectos do passado do Brasil.

Adriana Miranda da Cunha é doutoranda em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Matthew Wilhelm-Solomon é professor de atropologia social na University of the Witwatersrand (Wits).

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